segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A poeira é um bicho que vive comigo, conosco e contigo, está solta no vento.
Há poeira agora e a todo momento.
Há poeira lá fora.
A poeira aqui dentro
corroe todos os livros, e corroe os enfeites e os vasos partidos.
Corroe o telefone,
corroe qualquer ruído. Corroe tudo sem vida, cinza em tudo vivido.

A poeira percorre,
poeira no relógio, poeira nas estantes. Corroendo as memórias e o tempo restante.
Poeira nos retratos, eu todo empoeirado. Poeira na lembrança e em tudo guardado.
Poeira na esperança, poeira na criança que quis tudo na vida.
Poeira na partida, em toda, qualquer, saudade. A poeira tem vida. Há poeira na alma.
A poeira consome, a poeira inalada. Há poeira nas veias, a poeira entalada.
Coração de poeira, cérebro empoeirado. Há poeira nos cantos, e por todos os lados.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Anunciaram que você morreu.
Meus olhos, meus ouvidos testemunharam:
A alma profunda, não.
Por isso não sinto agora a sua falta.
Sei bem que ela virá
(Pela força persuasiva do tempo).
Virá súbito um dia,
Inadvertida para os demais.
Por exemplo, assim:
À mesa conversarão de uma coisa e outra,
Uma palavra lançada à toa
Baterá na franja dos lutos de sangue.
Alguém perguntará em que estou pensando,
Sorrirei sem dizer que em você
Profundamente

Mas agora não sinto a sua falta.

(É sempre assim quando o ausente
Partiu sem se despedir:
Você não se despediu.)

Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz já tempo que ele não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.
Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida?
A vida é uma só. A sua continua.
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora a sua falta.

Manuel Bandeira